Trecho de livro

Só Sei Que Foi Assim

Livro do jornalista Octávio Santiago revela uma história brasileira de estereótipos e preconceitos contra os nordestinos

Leonardo Neiva 16 de Maio de 2025

Você já se perguntou quando surgiu a ideia de que a região Nordeste seria sinônimo de atraso, miséria e ignorância? E quando foi que o Brasil passou a perpetuar esse retrato, seja em livros, filmes e novelas? É essa história que o jornalista Octávio Santiago investiga no livro “Só Sei Que Foi Assim” (Autêntica, 2025). Doutor em ciências da comunicação pela Universidade do Minho, de Portugal, o pesquisador com foco na representação social do Nordeste no Brasil busca explicar como, ao longo da nossa história, esses estereótipos foram se formando e se consolidando.

“De falas sutis a gestos escancarados, o olhar enviesado, quando se atrela para o mal, permeia estereótipos que são reproduzidos consciente ou inconscientemente, afetando a noção de identidade e o sentimento de pertença”, escreve na apresentação da obra. Da Macabéa de “A Hora da Estrela” à representação de personagens nordestinos no cinema e na TV, muita vezes nem percebemos ou até reproduzimos o preconceito e a simplificação diários com que se aborda a região — e que o autor escancara na obra.

Hoje, é verdade, esses estereótipos geram muito mais críticas do que no passado. Foi o caso do anúncio da novela da Globo “No Rancho Fundo” (2024), com imagens de personagens nordestinos sujos, mal vestidos; em resumo: um tanto maltratados pela vida. Eram aquilo que o próprio Santiago chama de “nordestino de folhetim”.

Nessa história de estereótipos, apagamentos e desigualdades econômicas que o livro revela, em que a imagem desfavorável dos nordestinos foi sendo construída historicamente a partir de interesses políticos, econômicos e simbólicos, o que autor faz é criar um pequeno manual antipreconceito. E propõe uma nova lente através da qual devemos observar e retratar a região, a cultura e seus habitantes.


Uma “espécie” diferente

O calendário marcava 10 de novembro, um domingo, dia de grande tiragem para o jornal impresso, quando a Folha de S.Paulo apresentou ao Brasil o “homem-gabiru”, afirmando que no Nordeste surgiam “novas ‘espécies humanas'”. A manchete, chamativa, estampava: “Nordeste tem novas ‘espécies humanas'”. A matéria explicava que a referência ao gabiru se devia ao fato de que, nas cidades, os exemplares dessa “espécie” viviam do lixo, como ratos. Nas zonas rurais, eram chamados de “nanicos” em razão da sua estatura baixa, que “já se compara à de pigmeus africanos”.

Amaro João da Silva, um trabalhador rural pernambucano de 1,35 metro de altura, tornou-se protagonista da reportagem por supostamente representar o impacto da fome no desenvolvimento físico dos nordestinos. A imagem ilustrativa, mostrando-o ao lado de um fotógrafo de 1,76 metro, destacava a diferença de tamanho como a medida do “problema”. Embora a matéria mencionasse imediatamente a condição de nanismo, tentava explicar que a “espécie” em questão teria sido “criada pela fome”: a “espécie dos homens nanicos”.

Como se não bastasse a baixa estatura, ela teria outras características ainda mais preocupantes: “o tamanho do cérebro também é menor e chega a ser até 40% menos capaz”, o que explicaria a “ignorância comum na região”. Essa “tendência”, considerada “mais forte entre os nordestinos”, era atribuída ao fato de o Nordeste concentrar “53% da pobreza do Brasil”, mas com uma ameaça substancial de “se espalhar pelo país inteiro”.

Em 12 de novembro, na seção “Opinião” do mesmo jornal, foi acrescentado o seguinte:

São absolutamente chocantes as informações divulgadas anteontem por essa Folha acerca do surgimento quase que de novas “espécies humanas” no Nordeste brasileiro em função da miséria e da fome. Não apenas hábitos desesperados — como o de disputar com os ratos gabirus os restos de comida nos lixões das zonas urbanas — como mesmo uma nova configuração física vêm se consolidando. […] Há grupos que se equiparam, nesse aspecto, aos pigmeus africanos. […] esses indivíduos chegam a apresentar pronunciadas deficiências nas faculdades intelectuais.

“Nova configuração física”, “deficiências nas faculdades intelectuais”… Essas declarações soam como ecos distantes, que poderiam buscar álibi no anacronismo como um escudo. No entanto, o ano era 1991. Praticamente ontem. O “homem-gabiru”, “descoberto” pelo jornalista cearense Xico Sá, enviado especial, foi retratado em edições posteriores da Folha, ressurgindo até 1995 e aparecendo também em outros meios de comunicação de grande circulação, transformando-se em um símbolo da miséria na região.

A criação dos estereótipos na sua gênese, nua e crua

Essa vontade de categorizar as ditas “espécies humanas” não é nova e nos leva de volta para os mesmos artigos de 1920 que têm nos acompanhado até aqui. Ao abordarem especificamente as características físicas das pessoas que habitam o recém-definido Nordeste, para apresentá-las ao “Sul”, os articulistas se expressaram de maneira impiedosa. Não é sobre inferir ou apreender o dito nas entrelinhas: as descrições são diretas, sem eufemismos ou disfarces. A criação dos estereótipos na sua gênese, nua e crua.

Foi nas “Impressões do Nordeste” de 15 de agosto de 1923 que os nordestinos ganharam, pela primeira vez, uma imagem detalhada na imprensa nacional:

O homem é geralmente pequeno e descarnado, com tendência à fixação de esqueleto defeituoso, como normal, sobretudo da ossatura toráxica, cervical e craniana. A mulher, raramente atraente, envelhece precocemente pela prematura concepção e excessiva prolificidade, não sendo rara a mãe de quinze filhos e, como resultado, a decrepitude aos quarenta anos.

Como se pode perceber, tem-se uma imagem estereotipada e depreciativa do corpo do homem e da mulher do Nordeste. Um corpo supostamente pequeno, tal qual o “homem-gabiru”, disforme, que não segue os padrões de beleza que, pela própria postura acusatória da análise, seriam facilmente encontrados no “Sul”. De novo, a caracterização em comparação com o que é o exemplo. A baixa estatura, a má-formação esquelética e o tamanho da cabeça são alguns dos elementos presentes nessa caracterização, que reforça no nordestino o papel de um Quasímodo, a maneira encontrada por Euclides da Cunha para descrever o sertanejo do “Norte”.

Após a definição dessa imagem na mente do leitor, o enviado Paulo de Moraes Barros estabelece relações entre a miscigenação e a ocorrência de doenças congênitas, o que explicaria o fato de as pessoas do Nordeste terem a aparência descrita por ele. O articulista chega a pontuar o que seriam os quatro “elementos básicos da degeneração” dos nordestinos, que incluíam, além da diversidade genética, questões sociais e de saúde e a ação do meio — recorrendo ao determinismo geográfico mais uma vez —, para explicar o porquê de o Nordeste padecer de certos problemas.

Não é de estranhar, pois, a consequente elevada porcentagem de homúnculos, cretinos, surdos-mudos, cegos e atrofiados, como produto de tais fatores, visíveis por toda a parte. São elementos básicos da degeneração os seguin- tes: 1.0 o cruzamento de indivíduos de raças extremas e a sub-mestiçagem; 2.0 a miséria habitual, agravada pelo flagelo periódico; 3.0 o clima quente, sem o ambiente moderador da vegetação; 4.0 as moléstias endêmicas, das quais resultam a anemia linfática e a multiplicação das taras mórbidas nas famílias.

O uso do termo ‘matriz’, que na criação de animais se refere a fêmeas adultas capazes de reproduzir, revela uma animalização da mulher

As mulheres recebem uma crítica mais nociva que os homens nas impressões de Moraes Barros, evidenciada por diversas menções desrespeitosas. Um exemplo é o texto de 10 de agosto de 1923, no qual, ao descrever as crianças que se aglomeravam à beira da estrada para ver a comitiva de inspeção, ele define suas mães como “desgrenhadas matrizes”. O uso do termo “matriz”, que na criação de animais se refere a fêmeas adultas capazes de reproduzir, revela uma animalização da mulher. Essa prática de desumanização, presente em outras passagens dos textos, estabelece uma conexão direta com o primitivo e o irracional.

Nas narrativas de Lourenço Filho sobre Juazeiro, a terra do Padre Cícero, as críticas ostensivas dirigidas à população feminina estão igualmente presentes, como as que foram publicadas no texto de 19 de novembro de 1925: “mulheres, […], despenteadas, do aspecto repulsivo, quase todas com a miséria estampada nas faces, dão-se à tarefa de catar insetos à cabeça dos filhos”. “Miséria estampada nas faces”? Parece bastante fácil entender como essa imagem se alinha à construção de um estereótipo do nordestino, que perpetua ideias de inferiorização e pobreza.

O conceito de ter a “cara de nordestino” torna-se, assim, a tradução da miséria e do sofrimento, carregando em si a representação de um povo relegado à escassez e à falta de dignidade. Essa associação não apenas desumaniza os indivíduos. Ela também condena a uma narrativa que os limita a serem vistos como meros representantes de uma condição precária, sem qualquer espaço para a diversidade e complexidade de suas realidades.

As crianças, por sua vez, também não escaparam de ter seu aspecto visual descrito nos relatos de agosto de 1923. No mesmo trecho do artigo de estreia de Moraes Barros, do dia 10, no qual ele narra os infantes à beira da estrada, eles são caracterizados como “maltrapilhos”. Temos aqui um adjetivo usado para referenciar algo ou alguém em estado de desleixo ou sujeira. Somado aos “insetos à cabeça” destacados por Lourenço Filho, forma-se a reduzida imagem preliminar de total descuido das crianças nordestinas.

O diretor de instrução pública do Ceará, ao discorrer sobre os fiéis presentes nos domínios do Padre Cícero, em sua série de artigos, contribui para essa visão distorcida ao afirmar, no texto de 18 de novembro de 1925, que a população apresenta “aspecto de degradação física, de sujeira, de imundice”, em “condições de penúria e abjeção”: “uma verdadeira síntese da patologia nacional”. Na publicação do dia seguinte, ele acrescenta que nem mesmo as plantas escapam desse quadro, pois “parecem também contaminadas da pobreza ambiente”. Pelo olhar de Lourenço Filho, os nordestinos são sujos, exalam miséria e “semelham mendigos”.

Toda essa representação patológica de falta de higiene constrói a imagem de um ambiente caótico e imundo, muito propício à aparição de insetos, ratos e até mesmo gabirus. Gabirus. Opa, acho que já lemos sobre essa espécie antes. Ou depois.

O conceito de ter a ‘cara de nordestino’ torna-se, assim, a tradução da miséria e do sofrimento

Produto

  • Só Sei Que Foi Assim
  • Octávio Santiago
  • Autêntica
  • 256 páginas

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