COLUNA

Observatório da Branquitude

Brasil de Odete Roitman, mostra a tua cara

A vilã das vilãs me provocava arrepios. Aos oito anos, meninas negras reconhecem e se ressentem de olhares enviesados, desferidos feito lanças por mulheres de meia-idade brancas e ricas

30 de Maio de 2025

O anúncio do remake de “Vale Tudo” me pegou firme o coração. Cresci no Rio de Janeiro dos anos 1980, cercada de memórias afetivas de uma infância anterior ao estabelecimento do Estatuto da Criança e do Adolescente, como costumo ironizar. Era normal uma criança andar de carro no banco do carona, brincar de fumar com chocolates em forma de cigarro — cuja embalagem trazia a foto de um menino negro —, e assistir a propagandas de bebidas alcoólicas. A televisão, “babá eletrônica”, socializou parte desta geração.

Todo dia, tudo igual. De manhã, o “Xou da Xuxa”, com a ordem precisa dos desenhos animados, acompanhava os comandos da minha mãe — escovar os dentes, amarrar os cadarços do tênis Conga azul-marinho, pegar a mochila e entrar na condução para a escola. Na volta para casa, a novela das seis embalava o preparo do jantar, enquanto os jornais local e nacional eram companhia à mesa. Já a novela das oito, para o meu desespero, era proibida: “Isso não é para criança. Hora de dormir”.

Tinha oito anos quando “Vale Tudo” foi exibida, em 1988. Termos como inflação, dívida externa e FMI eram tão familiares quanto brincar de pogobol, pular elástico ou jogar pega-peixe com as vizinhas. Sabia que o Brasil devia muito dinheiro ao exterior e que a situação não era boa. A “Vale Tudo” abordava esses temas quase em tempo real, refletindo as discussões da redemocratização: crise econômica, concentração de renda, desemprego, corrupção. Representava o embate entre um país de desigualdades abissais, de crimes de colarinho branco, da falsa harmonia racial, e do ideal prometido pela Constituição de 1988 — democrático, justo e igualitário.

Odete Roitman e seu círculo abastado catalisam a imagem de uma elite graduada na pedagogia das hierarquias para garantir impunidade e privilégios

É impossível não lembrar de Odete Roitman — sim, eu assistia escondida, espiando o reflexo da televisão no espelho no corredor. A vilã das vilãs me provocava arrepios. Àquela altura, aos oito anos, meninas negras reconhecem e se ressentem de olhares enviesados, desferidos feito lanças por mulheres de meia-idade brancas e ricas. Olhares que comunicam desprezo, senso de superioridade e um embaraço cognitivo característicos do racismo e do classismo. Como se dissessem: “Afinal, quem permitiu essa gentinha aqui, respirando o mesmo ar que eu?”.

Na trama, Odete Roitman e seu círculo abastado, desonesto e cáustico catalisam a imagem de uma elite graduada e pós-graduada em jeitinho brasileiro, especialista na pedagogia das hierarquias para garantir impunidade e privilégios econômicos e simbólicos. A ideia de raça é inseparável desse pacote. A branquitude — inventora da raça — assumiu para si o papel de medida da humanidade, de superioridade moral, ética, intelectual e estética. E, por oposição, relegou aos demais grupos raciais, portadores de cor, um estar no mundo deletério, marginalizado.

A nova Odete do remake carrega traços da original. No entanto, é mais sutil ao manifestar seu racismo. A presença de protagonistas e núcleos negros joga a favor da nova versão, mas o tratamento das relações raciais ainda precisa ganhar profundidade. A exemplo da insinuação de que Odete deseja uma nora negra — a inescrupulosa Maria de Fátima — para o filho Afonso. A identificação da vilã com a Fátima, baseada unicamente na ambição, soa forçada e pede um desenvolvimento verossímil. Demanda que a complexidade inerente às relações inter-raciais seja invocada.

Apesar disso, a vilã já recorreu, numa cena, ao argumento racista clássico que responsabiliza a “indolência” do povo brasileiro pelo atraso do país, em contraste com os “verdadeiros trabalhadores”, os imigrantes europeus. Ainda que sem citar diretamente a população negra, reforça tanto o mito da democracia racial quanto a lógica da meritocracia.

Embora a audiência do remake esteja aquém do esperado, permanece a expectativa: a nova versão conseguirá fazer jus ao sucesso estrondoso de “Vale Tudo”? Especialmente no que diz respeito a desmascarar uma elite que, quase quatro décadas depois, continua comprometida com um imaginário colonial e escravocrata. Uma elite cínica que prosperou na exploração e na impunidade — que, no limite, odeia o país.

Como noveleira convicta, seguirei acompanhando o remake na torcida pela teledramaturgia que tanto contribui para a cultura nacional. E, pessoalmente, porque me conecta a uma infância entre sonhos e desilusões, vivida na disputa pelo “país do futuro”. Esse futuro chegou. E ainda exige que o Brasil de Odete Roitman mostre a sua cara — e quem realmente paga pra gente ficar assim.

CAROL CANEGAL é mestre e doutora em Ciências Sociais (PUC-Rio). Atuou como pesquisadora no Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação (CAEd/UFJF) e analista de políticas públicas no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ). Atualmente é coordenadora de pesquisas do Observatório da Branquitude.

Observatório da Branquitude é uma organização da sociedade civil fundada em 2022 e dedicada a produzir e disseminar conhecimento e incidência estratégica com foco na branquitude, em suas estruturas de poder materiais e simbólicas, alicerces em que as desigualdades raciais se apoiam.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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