COLUNA

Círculo de Poemas

Ver com olhos novos

O coordenador do Círculo de Poemas, Tarso de Melo, analisa um poema de Duda Machado, do livro “Poesia 1969-2021”

13 de Junho de 2025

Um dos feitos mais admiráveis da poesia é a capacidade de “renovar nosso olhar”. Dito assim, parece só um clichê. Mas, de fato, um verso é capaz de mudar a forma como olhamos para a realidade ao redor, para os outros, para dentro de nós. E, para surpreender, os poetas não precisam sair caçando coisas que nunca vimos. Pelo contrário. Basta que nos façam olhar de novo, olhar de modo novo. Redescobrir. Não é raro na vida do leitor que um poema lhe mostre exatamente aquilo que ele já viu infinitas vezes, mas tudo ali parece novo, estranho, vibrante. Sabe aquela história de “cansei de ver isso”, “cansei de ouvir aquilo”? Com um corte aqui, um toque ali, o poema dribla esse cansaço e entrega um mundo que volta a dizer algo para nós e, quem sabe, sobre nós. Por exemplo, você talvez seja o felizardo que nunca precisou aproveitar uma turbulenta viagem de ônibus para colocar o sono em dia, mas certamente já viu muitas vezes essa cena que o poeta baiano Duda Machado reproduziu nos versos abaixo. Embarque:

*

“Carapicuíba”

sentados
a cabeça caindo
uma a uma
o sono
resistindo aos freios
aos solavancos
do ônibus

em pé
compactados num híbrido
de cabeças e braços
que não permite
distinguir seus donos
se equilibram

vacilam
e obstinados
se agarram
ao silêncio
último recurso
de espaço

*

A cena é trivial, convenhamos, e não apenas em Carapicuíba: o transporte público lotado e caro das regiões metropolitanas e o cansaço das pessoas no longo deslocamento entre casa, trabalho e estudo, com um acréscimo indesejado antes e depois da também longa jornada de trabalho (um paulistano, por exemplo, gasta em média 2h47 por dia no transporte público — e você sabe que médias são médias…). Viver nesse meio é buscar constantemente uma forma de sofrer menos, uma “redução de danos”, saltando, na medida do possível, de uma forma de transporte para outra (do coletivo ao individual, do público ao privado, do motor ao pedal e, claro, aos próprios pés).

O poeta olha para essa experiência sufocante e parece nos dizer: não podemos deixar que essa cena se naturalize, se torne normal ou fiquemos indiferentes. E o que ele pode fazer com seus parcos recursos? Mostrar a vida ali, soterrada e negada até um ponto em que não conseguimos distingui-la. O ponto em que não vemos mais a vida ou, pior, achamos que a vida é isso mesmo. Ecoa aí aquele Bandeira do poema “O Bicho”, que diante da cena absolutamente indigna de alguém “catando comida entre os detritos”, grita para nós leitores: “O bicho, meu Deus, era um homem”.

O poema de Duda Machado, no entanto, não ergue a voz. Ele passa filmando (ou melhor: reproduzindo) a cena e nos coloca dentro do ônibus. Sentados, na primeira estrofe; em pé, na segunda; vacilantes e obstinados, na terceira. O poema, a seu modo, é um ônibus cheio, os versos dão solavancos e, ao final, aquele silêncio, “último recurso/ de espaço”, é também nosso. Os versos compostos de poucas sílabas dão ao poema o compasso quebrado do ônibus: o freio brusco não deixa a viagem fluir.

Nesse “híbrido/ de cabeças e braços” se arrastando pela cidade, o poeta capta, pelo avesso, uma espécie de meditação exausta: quando nada está sob controle (só resta “resistir”, “se equilibrar”, “se agarrar”), voltar-se para dentro é o último recurso. E não há conformismo nisso: o ônibus aí é metáfora da vida. O sufoco ali espelha outros sufocos e o silêncio, quem sabe, talvez seja mesmo a véspera do grito.

Produto

  • Poesia 1969-2021
  • Duda Machado
  • Círculo de Poemas
  • 272 páginas

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Círculo de Poemas é a coleção de poesia e clube de assinatura da editora Fósforo, que lança duas publicações por mês de poetas das mais diferentes gerações, línguas e tendências. Todo mês, um poema da coleção é comentado pelo coordenador do Círculo, Tarso de Melo.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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